Ter para ser e aparecer
Vivemos em uma sociedade que nos define pelo ter, pelo possuir. Somos o que temos e o que consumimos, a identidade pessoal e o equilíbrio mental se ancoram no ”ter”.
Uma das características mais apontadas como a marca da “pós-modernidade” localiza-se justamente no desejo socialmente expandido da aquisição do supérfluo, do excedente, na insaciabilidade, na constante insatisfação. Uma necessidade satisfeita gera quase automaticamente outra necessidade, num ciclo que não se esgota, num continuum onde o final do ato consumista é o próprio desejo de consumo.
Chegamos a um ponto em que nem sequer nos damos conta de quanto o consumismo interfere nas nossas escolhas e na nossa vida social, substituindo as necessidades ditadas pelo bom senso por um artificial e insaciável impulso de possuir coisas que somos “levados a desejar”. Eleito símbolo de status, o consumismo nos leva a comprar objetos não pela necessidade e, muitas vezes, nem sequer pelo prazer de usá-los, mas pelo que representam. Somos impelidos a renunciar ao que já temos, e que até ainda nos serve, porque já surgiu uma novidade que “não podemos não ter”.
O consumo, como estilo de vida e novo valor ético, é o que determina não só o ter como o “aparecer”. Quanto mais consumimos, mais nos mostramos aos outros consumidores, mais aparecemos como “normais”. Quem não consome, quem se apega a um celular de dois anos atrás, quem não se converte ao digital, quem não atualiza rapidamente o guarda-roupa conforme os ditames da última moda é, no mínimo, “esquisito”. A sociedade do consumo referenda, portanto, uma nova “normalidade”, uma nova forma de cidadania, na qual os sinais de “pertencimento” não são dados pelo compartilhamento de direitos e deveres, mas sim pelo grau de consumo. Mas o que nos levou a isso? Onde teve origem esse mecanismo perverso?
Consumo: de meio de sobrevivência a fim em si mesmo
As origens da sociedade de consumo estão localizadas no período de consolidação da própria modernidade na Europa ocidental dos séculos XVIII e XIX, quando começaram a se delinear as características da sociedade de massa. Nas sociedades tradicionais, a produção de bens era limitada pela existência de matéria-prima e pela capacidade humana para produzi-los. A produção e o consumo estavam associados numa única atividade, ou seja, o consumidor era muitas vezes o produtor, consumia-se o básico para a sobrevivência. Ainda hoje podemos observar sociedades que praticam esse modelo, como os índios.
Nas sociedades indígenas as pessoas vivem em condições muito semelhantes. Em termos econômicos, as diferenças são insignificantes se comparadas às que existem em nossa sociedade, já que toda família é capaz de produzir o suficiente para sua sobrevivência. É a chamada economia de subsistência, mantida até mesmo por grupos já em contato com a tecnologia moderna e o comércio.
Nos séculos XVIII e XIX, o aparecimento da máquina a vapor multiplica a força dos animais e do homem, alterando profundamente o sistema produtivo e a forma de vida das populações. A Revolução Industrial permite a produção em larga escala e o alargamento dos mercados. O setor produtivo aumenta a oferta de bens agora destinados ao mercado, com vista à satisfação das necessidades claramente identificadas. O setor comercial transaciona os bens e dá a conhecer os produtos e as empresas, com formas de divulgação ainda muito restritas, com anúncios produzidos em materiais duráveis. Era informação “para ficar”, o que também refletia a durabilidade dos produtos. No século XX, o desenvolvimento industrial, com a produção em série, determina o nascimento do consumo de massa. Todos os habitantes dos países industriais passam a ser considerados consumidores em potencial de produtos produzidos em quantidades cada vez maiores a custos sempre mais baixos. Esse processo chega ao ápice quando os meios de comunicação de massa dão novo impulso à publicidade com a função de informar aos compradores em potencial sobre os novos produtos colocados no mercado, não só para satisfazer necessidades, mas, também, para criar artificialmente novas necessidades (necessidades induzidas). Assim, enquanto no passado à indústria produzia para as necessidades sentidas, a partir de então a lógica se inverte e é a produção a criar e a estimular as necessidades dos consumidores. A disseminação dessa lógica acelera-se a partir da segunda metade do século XX, quando o universo do consumo passa a ganhar centralidade tanto como motor do desenvolvimento econômico quanto, através da expansão do consumismo, como elemento de mediação de novas relações e processos que se estabelecem no plano cultural das sociedades modernas. Nessa perspectiva, o consumo deixa de ser uma variável dependente de estruturas e processos a ele externos e passa a se constituir enquanto campo autônomo, ou seja, o campo da atividade consumista deixa de ser espaço da atividade econômica para se constituir em campo de produção de significados e formas simbólicas. Consumir passa, neste caso, a ser percebido como processo de mediação de relações sociais.
Consumo, logo existo...
O consumismo é definido como a manifestação da necessidade crônica de adquirir continuamente novos bens e serviços, desconsiderando sua efetiva necessidade, sua duração ou as consequências sociais e ambientais de sua produção e utilização. Mas o que há de errado em consumir? Afirma-se que o consumo é a parte indissociável do cotidiano do ser humano, sustenta parte da economia de um país, estimula a produção e fomenta o crescimento que todos os países assumem como indicador de bem-estar. Com mais investimentos e consumo, a economia do país cresce, gerando mais produção e mais empregos, levando a uma relativa melhora das condições de vida da população. O problema surge quando os consumidores perdem as características de indivíduos para passarem a ser considerados uma massa que se pode influenciar (dirigir) através de técnicas de marketing, chegando, inclusive, à criação de "falsas necessidades"; quando as próprias pessoas, por sua vez, encontram o prazer no consumo por si só, e não na posse do produto; quando se difundi a mentalidade de que só consumindo em larga escala podemos garantir nossa identidade e nosso status social. A troca de mercadorias é de tal forma veloz que nunca se tem o bastante. Há sempre alguém que tem mais do que nós, o que nos deixa insatisfeitos e, assim, fáceis “presas” das estratégias cada vez mais sofisticadas da publicidade. A informação nos chega pelo rádio, pela televisão, pelo cinema; multiplicam- se os espaços agradáveis de diversão e consumo, vendedores
entram em contato por telefone, por e-mail, etc. E mais, para muitos, o mercado não é mais local, é cada vez mais amplo, globalizado. O consumidor tem ao seu dispor todos os produtos e serviços de todas as partes do mundo. A tecnologia da imagem não promove, na realidade, a venda de mercadorias e sim um "estilo de existência". A escolha cuidadosa de contextos, cenários e situações - um dos pontos fortes da mensagem publicitária - fazem o consumidor sentir que, consumindo o produto, será protagonista da “fábula” narrada na tela. Assim, no consumismo moderno, o valor de uso, a real utilidade do bem de consumo, fica em segundo plano. É a promessa de felicidade, a imagem e a idealização do produto o que atrai o consumidor. É a sociedade de consumo impondo aos indivíduos seus padrões e sua ideologia, uma sociedade com disponibilidade de mercadorias em grande quantidade, mas sem espaços para outras formas de pensar, agir e viver, enfim, uma sociedade unidimensional.
É possível um consumo responsável?
E se o consumo não fosse mais um fim em si mesmo, mas voltasse a ser um meio? Se voltássemos a refletir sobre o que consumimos e por quê? Se escolhêssemos com consciência, sobriedade e inteligência? Enfim, se praticássemos o consumo responsável, consciente, com base no impacto social e ambiental? O consumismo não é um fato que diz respeito apenas a nós mesmos, nossos gostos, nossos desejos, nosso direito de ser ou não dirigidos. Nosso consumo diz respeito a toda a humanidade: por trás de cada gesto nosso se escondem problemas de dimensões planetárias, de natureza social, política e ambiental. Basta pensar no impacto sobre os recursos naturais, nas repercussões sociais ligadas aos preços, nas condições de trabalho, na problemática ligada ao lixo, etc. Aparentemente o consumo é um gesto que se esgota no momento da compra, mas, na realidade, é um processo muito mais amplo, que pode ter forte impacto social e ambiental. Nesse contexto, que possibilidades existem para um consumo consciente, responsável? Por consumo consciente se entende o consumo racional, controlado, seletivo, baseado em valores sociais e ambientais e no respeito pelas futuras gerações. É um conjunto de escolhas que envolve todo um estilo de vida, um comportamento que diz respeito não só ao produto que se quer adquirir, mas também a toda a cadeia de sua produção, regulamentação, distribuição e controle. Consumidor crítico seria aquele que reconhecesse como componentes essenciais da qualidade de um produto algumas características da modalidade de produção, como, por exemplo, a sustentabilidade ambiental do processo produtivo, a ética no trato com os trabalhadores, as características de uma eventual atividade de lobby político da empresa produtora, as repercussões sobre a saúde de quem compra, os problemas ligados à reciclagem do produto após seu uso, etc. Em outras palavras, o consumidor socialmente responsável utilizaria seu poder de compra para contribuir para o alcance de fins que julga eticamente relevantes. Até agora são as empresas que sondam os consumidores para interpretar gostos ou, na maioria das vezes, para condicionar escolhas. Poucos consumidores consideram a possibilidade de fazer o contrário, ou seja, eles mesmos examinarem as empresas para verificar se seu comportamento corresponde aos seus próprios valores, ou seja, a possibilidade de utilizar a própria posição de consumidor para perseguir fins político e ético. Difícil? Provavelmente, mas não impossível. Podemos resumir aqui alguns princípios do consumo consciente:
PLANEJAR – Não comprar por impulso. O planejamento nos leva a comprar menos e melhor.
REUTILIZAR – Não substitua por um novo o que você pode consertar ou transformar.
RECICLAR - A reciclagem de lixo contribui para economia de recursos naturais, reduz a degradação ambiental e gera empregos.
VALORIZAR – Ao fazer uma compra, não leve em conta apenas o preço, mas também a procedência legal e a responsabilidade social da empresa que produziu o bem.
LEGALIZAR - Nunca compre produtos contrabandeados ou falsificados (piratas), pois isso contribui para a redução de empregos e estimula o crime.
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